terça-feira, 29 de setembro de 2009

sobre a viagem

As coisas estão tão diferentes para mim agora.
Minha nova casa é um quarto 3x5 metros, os corredores são longos e atapetados, os vizinhos são trinta e dividindo banheiro são quinze. As paredes têm cinco metros de altura até o teto, mas nisso eu dei muita sorte, o meu andar é bem alto. Enchi-as de pôsters. Eu divido quarto com uma pessoa que antes eu nem sabia que existia.
Agora lichia é lycheer, silício é silicon, lanchinho da tarde é jantar, 18 são 19 e feijão é batata-frita. Hoje experimentei uma das coisas mais nojentas do mundo; um bando de batata-frita cheia de molhos e com queijo respinguento em gordura até dizer chega. Aqui se chama 'poutine', mas eu comparo à feijoada no Brasil. Os nativos gostam, certo?
O frio está começando a chegar. O outono aqui é mais frio que Teresópolis no inverno e eu acho que vou precisar comprar casacos mais resistentes. O dia só escurece às oito da noite por enquanto, mas isso há de mudar no inverno, quando começar a anoitecer às quatro da tarde.
Eu estou dormindo todos os dias às duas, três da manhã. Os corredores são barulhentos e as festas são todos os dias.
As pessoas são diferentes. Em alguns aspectos positivamente e em outros negativamente. Eu sinto saudades de casa, mas nem tanto assim. Os primeiros dias foram os piores.
Aqui tem gente de todos os lugares do mundo. Essa é a parte mais legal. Ando praticando até meu espanhol e aprendendo pequenas coisas em francês.
Mas pensando bem mesmo, na verdade, a saudade não é de casa. A saudade é das pessoas. A saudade pertence às pessoas que aí ficaram, e só a elas. 
Acho que se elas estivessem aqui, estaria tudo bem.
Entender já está ficando mais fácil. Às vezes a pronúncia é excelente e às vezes extremamente travada. Altos e baixos. Os números ainda me vêm em português. Mas não as palavras.
Às vezes estou no skype escrevendo em português e alguém me pergunta alguma coisa em inglês e eu fico extremamente confusa e respondo nas duas línguas ao mesmo tempo.
Minha roommate me disse que eu falo em português enquanto durmo...
 

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

som da noite

            À noite os barulhos são mais altos. Às vezes consigo ouvir meu coração batendo. A pulsação me sobe no mesmo ritmo à cabeça, e eu a sinto latejar pesada, os ouvidos inflando. Daí percebo que tem muita vida dentro de mim. E penso o quanto não quero morrer. Só para ouvir meu coração bater daquele jeito de novo. Só para poder ler mais um livro, ver mais um filme, dar mais um beijo, cantar mais uma música.

            Então fico inquieta e tenho vontade de levantar-me, jogar as pernas para fora da cama com pressa e ir pular de bungee-jump, pára-quedas, comprar uma passagem espacial, viajar o mundo em oitenta dias, me casar, ter filhos, ganhar dinheiro e gastar ele todo. Mas então eu suspiro. Estou com sono.

            Começo a sentir outra coisa. Medo. Medo, medo, medo, medo. Só consigo traduzir o que sinto quando repito isso sem parar. Penso em como nossa carapaça é frágil quando toco meu próprio braço, a pele tão fina e rasgável. Penso em todos os acidentes possíveis, desde carro a avião, e como é fácil morrer. Então imagino que esse tipo de coisa nunca vai acontecer comigo. Mas então penso ‘com quem acontece então? Se todos pensarem dessa forma…’ Medo, medo. Medo de colocar as pernas para fora da cama e pisar num prego, e da dor. Medo de escorregar em um sabonete e bater a cabeça. Medo de sair da cama e fazer qualquer coisa.

            Então eu coloco Renaissance bem baixinho no CD ‘turn of the cards’ e sei que ainda tenho algumas horas de conforto até conseguir dormir. Mesmo se eu acordar sobressaltada no meio da noite ainda vai estar tocando, mas não quando eu acordar amanhã cedo. Começo a parar de pensar em vida e em morte, em entusiasmo e em medo. Penso que de nada adianta ficar pensando nessas coisas se isso atrapalhar eu seguir em frente na vida. Se isso atrapalhar o meu sono e eu não conseguir dormir por esse dia. Penso que a vida está no pensamento, dentro da cabeça pensante, e não na carne. Penso que tem muito ainda pela frente e que eu quero ser alguém, e que eu tenho que terminar de ler esse livro, quero amanhã ver meus amigos de bom humor, quero conhecer gente nova, quero enfrentar muitos desafios ainda, ter muitas experiências ainda, me divertir muito ainda. Que eu tenho ainda um futuro não-desvendado e caminhos para traçar, caminhos que ninguém pode traçar por mim. Eu fico leve e não sinto cair no sono.

            Eu durmo uma noite sem sonhos.

 

domingo, 6 de setembro de 2009

o relógio de Édipo

Édipo a desafiou

Ao desvendar seu enigma

E da esfinge livrar a cidade

Enquanto condenava sua alma

Às predições de um cego

 

Teria ao menos pensado Sófocles

Será que ele não sabia

Que aquele que de manhã engatinha

À noite sem o que anda sob duas pernas

Nada seria?

 

Teria ele acertado

Que à tarde valeria a pena lutar

Por sonhos e por ideologias

Em uma juventude de opiniões formadas  

Um mundo de escolhas e opções

À seu alcance, todas pela frente…

 

Teria ele acertado

Que o mesmo que com quarto, duas e três pernas

À noite se conformaria

Com as escolhas que fez durante a tarde

E que trilharam seu caminho durante o dia

Percebe que ideologias não são tão importantes

E se frustra por não ter se tornado

Aquele quem gostaria de ser

E saber que não há como voltar atrás

O relógio

 

Teria Édipo acertado

Se soubesse seu destino?

Seria diferente?

Faria-o Rei esposo de sua mãe

Assim como previsto?

Será que desafiaria a esfinge

Se soubesse que se tornaria  

Tão cego quanto aquele

Que amaldiçoou sua vida?

 

O que são ideologias

Para quem a mãe seduz

E o pai assassina?

 

Se ele voltasse o relógio

O destino o condenaria?

A juventude o condenaria?

Andaria sob quarto pernas

E nada seria?

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

pausa para um sonho

            Essa noite enquanto dormia descobri aonde iam parar todos os meus brincos, os quais ficam sem seus respectivos pares em uma freqüência assustadoramente rápida.

            Pelo que me parece, uma ganguezinha de duendes minúsculos que residem no jardim de minha própria casa se encarregavam de escondê-los em lugares inesperados. Na verdade eles não são muito bem duendes. São como uns serezinhos meio transparentes e coloridos, extraordinariamente rápidos e que não emitem som algum.

            Eu descobri isso, e então me pus a catar todos os brincos que encontrava escondidos pela minha casa e os colocava dentro de um saco que estava em minha mão. Mesmo assim, eles conseguiam entrar dentro do saco e escondê-los de volta, e eu comecei a me sentir desesperada, porque não conseguia nunca ter todos os meus brincos emparelhados ao mesmo tempo, já que aqueles seres infelizes não paravam de roubá-los.
            De alguma forma, eu acabei descobrindo um lugar dentro do meu quarto em que, se eu colocasse meus brincos ali depois de resgatados, os duendezinhos não conseguiriam apreendê-los novamente. Consegui pegar todos eles de volta, depois de muitas horas os procurando (pelo que parecia ser a milésima vez), e feliz da vida, sentei-me exausta, satisfeita com a vitória, meu interior rindo das caras de meus pequenos inimigos.

            Eles enfurecidos rogaram algum tipo de praga para cima de mim, e alguns de meus dentes começaram a ficar moles e caírem, e então eu comecei a catá-los enquanto eles caíam no chão e uma sensação muito ruim se aflorava em mim (meus piores pesadelos sempre envolvem dentes caindo, e muito, muito desespero, normalmente dentro de um jardim de infância gigantesco e desabitado, e cheio de passagens, como em um labirinto interminável, de onde se é impossível sair. Mas essa segunda parte não era o caso.).

            Mas então eu separei todos os dentes e fui correndo para o consultório da minha madrinha, antes doutora em história da arte e agora uma dentista, que colou-os todos de volta em minha boca.