Circulou as redondezas da escola, atravessou pela margem o grande lago de um complexo residencial, e encontrou-se mais uma vez, como em todas as quartas-feiras, diante do banco de madeira avermelhada, recentemente envernizado.
Esse era o momento preferido de Catarina. Uma vez por mês, aleatoriamente, ela sentia que precisava ali estar e se resguardar, como que para assimilar tudo que andou acontecendo em sua vida. Era sossegado, era seu. Naquele momento, e nunca em mais outro, Catarina pertencia somente a ela mesma. Só assim era capaz de ouvir seus próprios pensamentos e os de mais ninguém. Só assim ela se entendia, mesmo que apenas por meros minutos.
Saia um pouco da realidade que a sufocava, e vivia um pouco suas fantasias. Elas eram tão reconfortantes, fazia com que ela se sentisse um pouco menos sozinha no mundo. Hoje era o dia da bola oito.
Catarina vasculhou em sua mochila por um momento e de lá tirou aquela réplica em tamanho ampliado da bola número oito do jogo de sinuca. Aquela mesma que prevê seu destino quando chacoalhada.
Endireitou a bola de plástico em uma das extremidades do banco, juntou seus cadernos e bolsa por entre os braços e o peito. Catarina dirigiu-se à pitangueira, sua velha companheira, não muito distante dali. Por entre seus galhos e folhas, raios de sol de resto de tarde refulgiam uma beleza alaranjada, uma beleza conhecida. Como se ela soubesse que aquilo ia acontecer. Como se algo estivesse previsto, algo que ela previra.
Ajeitou-se de costas, agachando-se por entre as raízes expostas; raízes que transpareciam a força que sugava a vida da terra, com prazer e fúria para sustentar-se. Apoiou o corpo no tronco robusto atrás de si, enquanto encostava a mochila por entre os nós da madeira. Distraidamente, contemplou suas madeixas castanhas, prendendo-as por detrás das orelhas. Observava a formiga que escalava seu cadarço, quando se deu conta de que pensava no que Hugo havia a dito naquele mesmo dia mais cedo.
O colega nunca esteve tão distante e achacado. Olhava torto para ela junto com os outros amigos. Chocou-se uns meses atrás com suas olheiras e aparência apática e raquítica. Na época, tentou aproximar-se e arrancar-lhe o que havia de errado. Eles agiam estranho perto dela, e ela sentia-se inexplicavelmente triste, e não sentia vontade de fazer nada a respeito. Hugo sempre fora um grande amigo de infância, mas não trocavam nem uma única palavra desde então. Ela o evitava, ou pelo menos tentava. Até hoje.
A primeira pessoa se aproximou. Era um homem jovem de estatura média, um provável maratonista, pensou Catarina. Podia afirmar tal coisa por seu shortinho de ginástica ridículo e a regata verde entupida de suor que lhe descia do pescoço como um colar verde escuro. Estava bufando de uma corrida cansativa. Ou talvez fosse um homem de negócios, daqueles que acordou com uma idéia repentina de matar o trabalho e correr. Correr sem compromisso, sem direção, sem hora para acabar. Correr por correr.
O homem sentou-se no banco e não percebeu que estava sendo observado. Na maioria das vezes, não percebiam. Ele passou os dedos por entre os cabelos molhados. Catarina imaginou qual seria seu cheiro, se ele cheirava a orvalho e sabonete de chocolate, ou a perfumes caros e franceses. Ele era mais do tipo cítrico, e ela conseguia sentir seu aroma de folha de laranja. Ele poderia se chamar Marcelo, ou Antônio.
Antônio estava vermelho, mas já não transpirava como antes. Estava exausto. Talvez fosse pela noite anterior, na qual foi dominado por uma insônia delirante. Ou talvez fosse por ele simplesmente ter corrido como um desgraçado. O homem finalmente percebeu a bola a seu lado. Sua expressão não era de curiosidade. Era mais de como se ele já estivesse a esperando ali, como se a bola precisasse dele e ele soubesse disso. Alguma coisa o deixava estranhamente inquieto. Talvez fosse imaginação da garota, mas ele parecia rodeado de experiências desgastantes e perturbadoras. Ainda assim, era mais provável que estivesse delirando essas estranhezas, pois sentia-se apreensiva desde o início daquela tarde.
Catarina não conseguia tirar o que Hugo havia lhe dito da cabeça. Até mesmo Antônio, sua primeira personagem do dia, que nada tinha a ver com aquilo tudo, já estava pagando o pato.
Sem olhar para os lados ou pensar duas vezes, Antônio tocou a superfície lisa da bola oito. Só a tocou a princípio, como alguém que encosta em um esquilo e tem medo de sua mordida inesperada, por este ser aparentemente inofensivo. Pensou o que estaria aquilo fazendo ali. Catou-a com uma das mãos e começou a tacá-la de uma mão para a outra distraidamente. Virou-a de cabeça para baixo quando percebeu a base reta e analisou a parte transparente que continha um dado de dez lados por dentro, com dez frases distintas em cada um de seus lados.
Antônio parecia indiferente. Não acreditava em coisas místicas como essa. Provavelmente tinha uma tia que fez seu mapa astral certa vez, deu-lhe um futuro tenebroso o qual o fez mudar de vida bruscamente. Tantas coisas diferentes do previsto já haviam ocorrido desde então, que Antônio debochava da bola oito. A bola, que não tinha nada a ver com isso.
Sacolejou-a com o mesmo ar indiferente da primeira vez que a havia tocado. Revirou-a e esperou a resposta. Em uma questão de segundos, notou-se o sorriso de meia boca, um sorriso ligeiro que se esvaiu tão depressa quanto surgiu. Sempre há um resquício de superstição. Essa coisa chamada destino assusta até mesmo os mais ortodoxos.
Antônio deu conta de si, percebeu que não estava mais cansado e pôs-se a levantar. Catarina despediu-se dele com o olhar.