“Como alguém é capaz de viver da morte?”
O mais incrível desta pergunta, freqüente no pensamento ordinário, é sua hipocrisia. E hipocrisia é uma das poucas coisas que me assustam.
Com certeza qualquer ser pensante considerado medíocre, não excluindo tantos macacos quanto políticos, seria capaz de admitir a si próprio a ironia dessa pergunta. É uma lástima ver como que em um mundo tão evoluído certos seres consigam regredir tanto psicologicamente, a ponto de serem simplesmente tapados quando se trata desse assunto em particular. É possível que seja apenas uma questão teimosa de misticismo ao preferir acreditar na dúvida, mesmo assim é mais provável que seja desilusão, pois não há cegueira tamanha que não consiga enxergar recipiente transbordante como este. Às vezes, me excedo ao acusar hipocrisia. Estaria o homem tentando se enganar ou enganar aos outros com essa impostura? O homem desde que nasce renega a essência de sua existência por seu triste fim.
Se vivemos para a morte, por que não dela? É uma completa ironia, e no mínimo estupidez viver com a finalidade de morrer e não aceitar, de forma preconceituosa, quem vive de morte. Suponho que indiretamente, todos vivemos dela. É tão natural quanto escovar os dentes após as refeições, apaixonar-se por quem não devia, ganhar uma bicicleta na infância ou cuspir os caroços da uva. Além de estar por toda a parte, a morte é inevitável. Congratula-se o início de nossas vidas. Brinda-se o choro mórbido e sofrido de um recém-nascido predestinado a sofrer e ser martirizado pelos próprios erros, aprender com estes, ensinar algo à próxima geração, ser inutilizado pela velhice, deixando apenas seu legado e memórias que o tempo não imortaliza. A morte deveria ser aplaudida. Assim como o nascimento. Deveria ser a comemoração do fim de uma vida bem-sucedida, onde se foi aprendido e passado adiante, deveria ser visto como a primeira vez em que aquele recém-nascido não sofrerá mais, ou errará. A morte está ali, e ela é certa. Como se comemora um nascimento, sabendo-se do obscuro futuro não tão distante?
Não, a morte é uma dádiva, um refúgio. A morte é necessária. Querida por todos nós. Como alguns não enxergam isto? É tão óbvio quanto uma porta não abrir por estar trancada. A morte está lá, nos ajudando. Agraciando-nos com um pacote de férias paradisíaco com tudo incluso, sem prestações ou pretensões, nem mesmo dia de retorno para casa. Arrancando a maldição que foi a nós lançada e traçando-a em outro. A morte não hesita; tem hora marcada e é atendida prontamente. Convivendo conosco, nos esperando para oferecer-nos um final, o final mais triunfoso possível que qualquer outro que pudéssemos pedir. Ela nos faz um favor. É um dom viver dela, orgulho-me disto.
Revendo os fatos, acho que é mais uma questão de medo, não hipocrisia. Talvez egoísmo. Egoísmo de preferir dar-se vida, bebendo-a como um elixir, a entender que da vida não dá para se reaver. Um egoísmo tão exacerbado, a ponto do desespero angustiado de não aceitar que inevitavelmente, sua vida será cedida para que haja espaço para outras descendentes.
Ela teria desejado não ter provado da maçã se soubesse disso. Talvez nem Eva acreditasse em Deus. Mas, desde que a Terra não parasse de girar, tudo continuava. A vida, a morte. Faz parte. Sempre tiramos algum proveito das coisas, de qualquer forma.
Além da própria, há coisas às quais brindo na vida. Brindo à mãe e ao pai. Brindo à música. Brindo ao amor. Brindo às idéias. Brindo às mitocôndrias. Brindo à indulgência. Brindo à ignorância.
E brindo à morte.
Um comentário:
Brindemos ao Arbeitsunfähigkeitsbescheinigung !!
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