quinta-feira, 27 de agosto de 2009

briga dentro do carro

-       - Você está bêbado de novo?

Ele tinha acabado de fazer uma ultrapassagem pela direita e quase atropelou um cachorro. O homem careca do carro ao lado abaixou o vidro e o chamou de filho da puta sem cerimônias. Ela olhava para ele com desprezo nos olhos.

-       - Não.

-       - Roberto, pàra o carro.

-       - Já disse que eu estou bem.

Sua voz não estava engrolada, mas ela o conhecia muito bem para ter certeza de que isso não significava nada. Os marcadores do velocímetro oscilavam num desvio inconstante entre cem e cento e vinte quilômetros por hora.

-       - Roberto, pàra esse carro. Ali no acostamento. Você vem para o carona e eu dirijo, está bem?

-       - Não!

Sua voz era paciente, mas do jeito que ela fazia isso ele se sentia pequeno. Uma criança tola e inconseqüente. Detestava quando ela falava desse jeito.

-       - Você pàra o carro, olha só, eu dou a volta, você passa para o lado do carona e nem precisa sair de dentro...

-       - Não, porra!

-       - Roberto, pàra esse carro.

Ela estava ficando vermelha. Estava furiosa. Ela sempre chorava quando ficava com raiva.

-       - Não, eu vou dirigir a porra do meu carro e você vai ficar quietinha aí!

-       - Não grita comigo! Pàra esse carro que eu quero descer, agora.

-       - NÃO VOU PARAR O CARRO!

-       - PARA ESSE CARRO QUE EU QUERO DESCER!

Ela estava chorando e seus braços tremiam. Ele estava ficando nervoso também e tentou se controlar.

-       - Lindinha, eu estou no meio da estrada, não vou deixar você aqui sozinha...

-       - EU NÃO VOU FICAR AQUI E MORRER EM UMA BATIDA ESTUPIDA POR CAUSA DO SEU ALCOOLISMO, SEU MERDA!

-       - Lívia, eu já disse...

-       - PARA ESSE CARRO LOGO, PORCARIA!

A freada foi brusca e barulhenta. O impacto deixou-os atordoados por um momento dentro do carro, parados e bufando silenciosamente. Ela tirou o cinto de segurança e abriu a porta do carro com brutalidade, deixando-o ali, decidida. Mas ele sabia que ela ia voltar.

Lá fora o cheiro de borracha queimada era nauseante. Ele esperou dentro do carro, enquanto colocava os pensamentos em ordem, antes de fazer qualquer coisa. Era difícil, mas ele não culpava as doses de whiskey. Aquilo era pouca coisa, ele sabia, já estava acostumado.

Ela já estava longe, e ele se sentiu mal, porque agora ela estava longe demais, e talvez ela não fosse voltar, como ele achava que ia acontecer. Abriu a porta afobado para correr atrás dela.

-       - Lívia, volta aqui, por favor. Não faz isso, aqui é perigoso, volta para o carro amor.

Ela era impassível. Quase como se fosse surda, não mudou sequer o ritmo ou a postura enquanto se afastava.

-       - Lívia, por favor, volta para cá. Aqui está frio, eu quase não sinto minhas pernas.

Ela girou nos calcanhares impetuosamente, irada, ainda distante.

-       - Talvez você não esteja sentindo suas pernas porque você é um bêbado, seu imbecíl!

-       - Lívia, corta essa, volta aqui!

-       - Tchau Roberto.

-       - Amor, espera, calma. Eu deixo você dirigir, está bem? Não é isso que você quer? Volta, eu sento no carona, prometo que não vou atrapalhar.

Ela parou mais uma vez, virou-se lentamente e o encarou à distância, os braços cruzados. Ela ficava linda quando estava irritada, mas ele sabia que não podia falar isso, porque ela se irritaria mais ainda, por mais que isso a fizesse cada vez mais bonita.

-       - Você vai me deixar dirigir?

-       - Vou. Juro que vou.

Ele se aproximou dela. Foi andando aos poucos, e quando chegou perto viu que as lágrimas já estavam secas por causa do vento, mas ela ainda estava vermelha e seu cabelo estava um pouco desgrenhado.

Ela fitou de volta aqueles olhos fundos com olheiras, o jeito desleixado lindo que a conquistou e a condenou. Maldito seja, maldito, o bafo forte de bebida deixou um rastro naquela névoa, ela sentia o cheiro e o gosto mesmo sem tê-lo provado naquela noite. 

-       - Me dá as chaves.

Ele obedeceu sem pestanejar. Mas ele era idiota, sabia o que podia e o que não podia fazer com a fera, mas ele não se importava e sempre fazia a mesma coisa.

-       - Sabia que você fica linda quando está estressada?

-       - E então você faz questão em me manter nesse estado para sempre?

Ela disse essa última parte já andando em direção ao carro, sem olhar para ele, bem na sua frente, enquanto ele ainda estava ali parado, só a observando. Foi tão baixo que talvez não tivesse sido falado para ser ouvido.

Ele a seguiu e sentou-se no carona, obediente. Ela colocou seu cinto e o dele, e ele sentiu-se uma criança mais uma vez, mas não ficou mais tão irritado, porque pelo menos ela estava ali ao lado dele, e ele não a perdia de vista.

Eles ficaram muito tempo em silêncio, mas os dois estavam muito acordados e talvez até mesmo estivessem pensando a mesma coisa. Devem ter passado vinte e cinco minutos, quase meia hora, os dois em silêncio.

-       - Ei... Sabia que você é a única garota que eu já deixei dirigir o meu carro?

-       - Nossa, que honra.

Ela era sarcástica e seca, e mexeu a boca o mínimo que podia para pronunciar aquelas palavras.

Ele pousou a mão esquerda na perna direita dela, mas ela ainda estava brava e mexeu a perna para que ele percebesse seu desconforto e tirasse a mão de lá. Mas ele não tirou.

Ela não conseguia entender como ele não tinha percebido que eles tinham brigado e mesmo assim ele fingia que nada tinha acontecido, e que ela queria conversar sobre isso depois quando ele não estivesse bêbado. Como que ele não entendia que aquilo ainda não tinha acabado?

Mas ele entendia e sabia que isso a irritava e que ela não sabia que ele sabia, mas sempre quando ele se fazia de desentendido as coisas acabavam mais rápido, porque ela acabava relevando, e depois eles faziam amor e tudo ficava bem de novo.

Ela não queria falar, mas ele sabia que ela estava triste e ele estava triste e ele achava que, talvez se eles conversassem agora, as coisas melhorariam um pouco. Ele não se sentia mais bêbado, ele se sentia triste, e vazio e enjoado. Ela se sentia triste e pesada, e tinha muita, muita vontade de chorar, mas ele não.

Ele tirou a mão da perna dela e ficou olhando-a por um bom tempo, e nesse momento ela percebeu que ele ia começar a falar, e então ela encheu o peito de ar e ficava repetindo dentro da cabeça sem parar “não chora, não chora, não chora...”

-       - Eu estou te perdendo, não é?

Ela ficou em silêncio e mordeu o lábio. Suas narinas inflaram e ela tentou ignorar o que ele tinha falado, mas aquilo ficou na sua cabeça, competindo com a vozinha “não chora, não chora...”.

-       - Às vezes eu sinto como se você nunca tivesse me tido.

-       - Como assim?

-       - Como se você já tivesse me perdido há tanto tempo que eu não consigo nem me lembrar de quando você me teve.

-       - Você não me ama mais?

-       - Você me faz mal.

-       - Eu lhe faço mal?

-       - Eu amo você tanto que isso me sufoca e eu fico pesada e confusa.

-       - O que eu fiz?

Ela soltou um risinho, e se risinhos pudessem ser traduzidos em palavras, esse diria “você é mesmo inacreditável...”

-       - Você não me respeita. Mas eu acho que isso é pedir demais. Você nem se respeita.

-       - Eu respeito você!

-       - Você nunca faz o que eu peço, nunca abre mão de nada para mim. Nunca admite quando eu estou certa, nem faz nada para me ajudar quando eu preciso. Não faz questão de que eu seja feliz, e sim de que eu esteja com você. Você está me arrastando, me afogando, me levando junto com você e toda essa bosta.

-       - Olha Lívia... Desculpa. Eu juro que não é por mal. Você sabe que eu não percebo quando faço essas coisas. Prometo que vou tentar mudar.

Ela deu um suspiro alto. Isso não era realmente uma palavra, mas sim uma declaração não-verbal que significava que ela pensava que ele era um idiota e que estava gastando tempo e voz à toa discutindo com ele.

-       - Está bem.

-       - Isso foi irônico...

-       - Pelo menos a bebida não tirou ainda todos os seus sentidos.

-       - Eu prometo que não vou mais beber.

-       - Tudo bem.

Mas ela sabia que ele não ia parar de beber, e ele também, e os dois sabiam que não estava nada bem.

-       - Você me perdoa? 

            Ele só falava essas coisas porque era mais fácil, e ele estava sempre de saco cheio.

-       - Não quero falar sobre isso agora.

-       - Você sabe que a gente não vai falar sobre isso de novo.

-       - Sei.

-       - Então está tudo bem entre a gente?

-       - Está.

Mas ela só falou aquilo porque achava que estava certa e que eles ainda iam discutir isso de novo e porque ela queria que ele se calasse.

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