sábado, 11 de julho de 2009

era uma vez

Cinderela acordou sobressaltada. Abriu os olhos tão rápida e subitamente que uma pontada lhe incidiu na cabeça. Tudo girava à sua volta. Percebeu então que a dor em sua cabeça não era uma pontada momentânea, e sim um latejo permanente. Assim ficava mais difícil de colocar os pensamentos em ordem. Tentava com todas as forças focalizar o ambiente em que se encontrava.

Empurrou os lençóis desajeitadamente e sentou-se. Seus braços a sustentavam, envergados às suas costas. Aquela superfície oscilava em ondas, e um de seus braços vacilou. Ela empurrou aquilo delicadamente com uma das mãos. E de fato ondas se propagavam, balançando todo o seu corpo. Um colchão d’água. Aquilo certamente não era o palácio. Não fazia a menor idéia de que lugar era aquele.

Olhou para o teto, estreitando os olhos até que virassem fendas. Demorou um tempo até que percebesse que se encarava lá de cima. Do espelho, uma Cinderela descabelada e meio entorpecida olhava para baixo, o pescoço esticado, uma cama redonda e balançante em volta. Ela ainda não conseguia entender onde estava, ou o que aquilo significava.

Ainda estava um pouco tonta, mas já conseguia observar as coisas a seu redor com maior discrepância dos detalhes. Olhou para o lado. O edredom estampado de onça estava completamente remexido e embolado, mas não havia sinal algum de ter mais nenhuma pessoa por ali. Então ela se pegou pensado: “E por que teria?”

Empurrou a colcha com as pernas até que ela se desenrolasse de seu corpo por completo. Notou, envergonhada, que estava semi-nua. Aquela situação não lhe parecia estranha. Abraçou as pernas escondendo o corpo, lutando com força para se lembrar da noite anterior. Sua cabeça ainda latejava, agora com uma intensidade ainda mais perturbante.

Olhou ao redor. Aquele lugar era de extremo mau gosto. Em contraste com a decoração delicada, repleta de nuanças refinadas do palácio a que estava acostumada, aquele lugar era carregado de extravagância e exageros. As cores eram pesadas e estimulantes. Era quase vulgar. Todos aqueles objetos circulares e dourado fulgurantes, desde o pé da cama até a mesa e cadeiras, com curvaturas insinuantes. Quase fálicas. O ar não era só denso. Ele cheirava a sexo. Relances da noite anterior começavam a pipocar em sua cabeça, de forma desordenada e incoerente. Bateu com a mão na testa, repreendendo-se. “Ah, não... de novo não.”

Começou a ouvir um barulho do outro lado da porta. Pareciam arranhões, pancadinhas fracas, vindas da altura do rodapé. Aquilo não a assustou. “Jacque”, pensou. Jogou os pés para fora da cama bruscamente, caçando com os olhos alguma coisa que pudesse usar para cobrir o corpo. Deparou-se com um roupão vinho pendurado em um cabide na porta do banheiro, e jogou-o sobre os ombros, dando um nó frouxo em torno da cintura. Conseguia ouvir o barulho do chuveiro ligando, e ficou paralisada por um momento. Não tinha percebido até agora como seu corpo estava dolorido. Aparentemente, a ressaca era das brabas.

Quando chegou na porta, ajoelhou-se no chão, uma das mãos pendurada na maçaneta, a outra estendida com a palma para cima, encostada no chão. Abriu uma frestinha da porta, o suficiente para que sua mão passasse para o outro lado. Em poucos segundos já sentia o contato das pequenas patinhas afoitas em sua palma, fazendo-lhe cócegas. Recolheu a mão rapidamente, fechando a porta com a outra em um baque surdo. 

-       Puta que p... – gritava o ratinho com a voz fina esganiçada.

-       Shh, você tá falando alto demais – ela apontou sugestivamente para a porta fechada do banheiro – E minha cabeça tá doendo.

-       Cara, você é muito estúpida mesmo. Quantas vezes eu já te disse que se alguém te falar “posso te dar um Boa Noite Cinderela?” ele não está sendo educado e simplesmente querendo se despedir de você? Acho que essa coisa de loira burra não é só lenda não. Depois que Aurora ficou por séculos adormecida, e olha que nem Cinderela ela se chama...

-       Jacque, eu te falei que isso aconteceu só uma vez. Eu não sou tão imbecíl assim.

-       Ah, e você falou o quê então? “Meu nome é Alice, vim do País das Maravilhas”. – remedou, gesticulando – Também já te disse que aquele filho da mãe do Lewis Carroll era um padre pedófilo e drogado, e qualquer um ia confundir suas intenções se você falasse uma coisa dessas...

-       Não, não, eu nunca repetiria isso Jacque! – o rubor começava a tomar conta das maçãs de seu rosto.

-       Porra, então o que aconteceu dessa vez? – Jacque estava visivelmente alterado. Sua voz conseguiu afinar mais ainda, subindo duas oitavas. Seus olhos estavam esbugalhados e irreconhecíveis – Olha só, já cansei de limpar sua barra com o príncipe. Se você gosta de pular a cerca, se vira de agora em diante.

-       Mas ele...

-       Tá, tá, eu sei que ele é viado e que o casamento de vocês é arranjado. E que por isso, tecnicamente, você não está pulando a cerca.

-       Então! Você não idéia de como é frustrante...

-       Mas ele ia ficar uma arara se descobrisse isso, ia soltar a franga. E eu não sei o que é pior: a imprensa descobrindo você, a reles plebéia que virou princesa por causa de uma idéia idiota daquela gagá da Fada Madrinha, está chifrando o príncipe encantado mais cobiçado da Europa em um motel pé rapado como esse ou descobrindo que o príncipe é uma baitola.

-       Ele sabe, e ele não se importa! Você sabe que ele tem um caso com o cocheiro...

-       Quem não sabe disso? Até a rainha da França sabe disso e finge que não vê! –  Jacque balançava frenético as patinhas ariscas acima da cabeça – O cocheiro, aliás, caso a madame tenha se esquecido, é por acaso um rato que chegou depois de meia-noite em casa e vai ser um homem repugnante para sempre por causa de um feitiço estúpido daquela Fada Madrinha idiota! – Jacque cuspia suas palavras com ódio.

-       Tá, tudo bem, eu já sei como você se sente a respeito da Fada... Vamos embora, me ajude a sair daqui. Você tem razão. Eu sinceramente não quero virar um escândalo nacional. E ele pode sair do banheiro a qualquer momento...

-       “Vamos embora Jacque, me ajuda”, tudo eu, tudo eu. Bando de aristocrata imprestável. Você sabe que eu gosto de você Cinderela, mas você tá abusando da sua sorte. Minha boa vontade para com você está por um fio. – Jacque apontava para o nariz dela incriminadoramente.

-       Desculpa Jacque. Prometo que vou ser mais cuidadosa da próxima vez.

-       Próxima vez? Não senhora, você entendeu tudo errado! Não vai ter uma próxima vez! Deus do céu, e eu que pensei que a sua amizade com a Pura de Neve ia botar bom senso nessa sua cabecinha oca... – ele dava soquinhos fracos no cocuruto loiro da princesa.

-       É Branca de Neve, Jacque... E você só diz isso porque ela ficou por nove meses morando com sete anões e não engravidou de nenhum deles...

-       ... Porque ela era boa e pura e estava esperando seu grande amor chegar para a buscar e eles serem felizes para sempre! – Jacque piscava os olhos, com uma expressão de profunda esperança e deleite.

-       Jacque, deixa de baboseira! Essas coisas não acontecem nem em contos de fadas... – Cinderela debochava do amiguinho – Todo mundo sabe que a Branca de Neve só não engravidou porque ela é um baita dum traveco. E nem branca ela é de verdade. Ela tinha vitiligo e...

-       ...Fez a mesma cirurgia do Michael Jackson, tá, tá eu sei. Depois a gente discute. – de repente sua voz se tornou urgente – É melhor você catar suas coisas antes que aquele zé mané resolva sair do banheiro... – ele apontou para os pés da mesinha de cabeceira. Ali jazia o vestido azul celeste, todo embolado e sujo de geléia de morango – pelo visto a noite foi boa... – comentou sarcasticamente.

-       Cale a boca. Você viu meu sapatinho de cristal?

-       Um tá ali... o outro deve ser aqueles cacos espatifados ali naquele canto...

-       Aah nãão, gostava tanto dele... – Cinderela debruçava-se sobre as evidências, catando os pedaços um a um e embrulhando-os com cuidado no vestido de cetim.

-       Vamos combinar que um sapato feito de cristal não é lá uma idéia muito brilhante. Só aquela Fada Madrinha mesmo...– Jacque foi repreendido com um olhar de Cinderela, que abria a porta em silêncio para que fossem embora imperceptivelmente – Ainda mais você, constantemente embriagada e em boates... e querida, ter engordado uns quilinhos também não ajuda nada em colocar um sapato que pode quebrar a qualquer momento... um sapato de mármore seria obviamente mais apropriado...

-       Fica quieto! – disse Cinderela rispidamente, pegando Jacque com uma das mãos, segurando as roupas e os restos dos sapatos com o outro braço, enquanto deslizava nas pontas dos pés até a porta já aberta.

-       Eu com certeza seria uma Fada Madrinha muito mais decente. E se eu tivesse uma varinha de condão...

-       ...Eu a enfiaria no seu...!

-       Mas que grosseria! – Jacque interrompeu-a – Onde estão seus bons modos de doce princesa indefesa? – a porta já havia sido fechada sem ruídos às suas costas.

Eles desceram o corredor afobadamente, ainda trocando blasfêmias aos sussurros, deixando a cena do crime para trás.


E eles viveram felizes para sempre.

 

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